A prevalência das vontades do paciente em seus últimos momentos de vida foi tema central do evento “Direito a Morte Digna”, promovido em 15 de agosto pela FEHOESP, na cidade de São Paulo.
Com experiências reais de quem escolheu tratamentos pré-morte, o debate entre médicos, advogados e gestores em saúde trouxe à tona o testamento vital e as diretivas antecipadas do paciente, o desconhecimento da população quanto aos documentos e as dificuldades de familiares, profissionais e instituições de saúde na hora de fazer valer o que foi registrado pelo doente.
“Participar de um debate rico e plural é único. Nosso fórum sobre o direito à morte digna traz visões diversas e, embora tenhamos pontos de vista diferentes, creio que todos concordam que é preciso debater o assunto na sociedade brasileira e desmistificar o assunto da morte. É o primeiro passo”, afirmou Yussif Ali Mere Jr, presidente da FEHOESP, em sua fala de abertura.
Para Luciana Dadalto, fundadora do portal Testamento Vital e doutora em Ciências da Saúde pela faculdade de Medicina da UFMG, a ausência de leis e projetos de lei que abordem o tema de maneira mais específica trazem cada vez mais desconfiança por parte dos profissionais e da população que, muitas vezes, não têm conhecimento de seus direitos na hora da morte.
“A morte ainda não é um tema de discussão social. Infelizmente as poucas pessoas que têm acesso às diretivas ou ao testamento vital ainda ficam confusas na hora de preencher esses documentos e informar o médico de confiança e a família. Um outro ponto de interesse são os custos gerados, em sua maior parte desnecessariamente, por pacientes que ocupam leitos em hospitais e deveriam estar sob cuidados paliativos. Se houvesse uma abordagem maior sobre a morte digna, certamente os benefícios se estenderiam não somente ao doente, mas também ao sistema de saúde como um todo”, explicou.
Nise Yamaguchi, médica e diretora institucional do Instituto Avanços em Medicina do Hospital Israelita Albert Einstein, destacou a sinergia do ambiente hospitalar e dos profissionais de saúde com o paciente e seus familiares no momento de escolha dos tratamentos adequados à doença. Para ela, as relações humanas devem prevalecer sob qualquer aspecto físico.
“A objetividade impessoal é um remédio ineficaz. Trabalho querendo conhecer a família do paciente, pergunto nome, telefone, aspectos emocionais e as crenças espirituais de cada um, pois certamente nos momentos de decisão tudo isso será levado em conta. A pergunta que sempre faço é por que cada um considera que a vida vale a pena? A doença não é mais importante que o paciente”, afirmou.
Desde os anos 2000 o setor como um todo debate os cuidados paliativos e a visão da terminalidade de vida buscando maneiras de se evitar a dor e o sofrimento e do doente. Reinaldo Ayer, coordenador do Centro de Bioética do CREMESP explicou que, embora muito já tenha sido falado, pouco tem sido feito na prática. “Temos dificuldade porque vivemos em um país desigual onde a formação médica, o acesso à saúde e os investimentos são complicados no Brasil. A sociedade precisa entender o que é a morte e decidir como a tratar. Está mais do que na hora de promovermos esse debate”, disse.
Escolhas congeladas
O que há dentro de sua geladeira? Certamente sucos, legumes, verduras, misturas. Uma família de São Paulo, no entanto, tem um item um tanto quanto diferente guardado em seu congelador: um testamento vital.
Foi essa a maneira que a economista e especialista em gerontologia e envelhecimento, Elca Rubinstein, encontrou para tornar fácil o acesso a suas vontades pré-morte para ela mesma, amigos, familiares e médicos. É dentro de um plástico, intacto, que o documento fica visível a qualquer pessoa que abrir o eletrodoméstico na cozinha.
“Isso é o meu empoderamento, é o que eu quero deixar. Desejo que as pessoas conheçam a minha vontade para que não haja dúvidas para ninguém. Nos Estados Unidos é muito comum as pessoas deixarem o testamento vital no congelador, então, caso eu tenha algum acidente e vá ao hospital em emergência, todo mundo já sabe como agir”, explica.
Rubinstein analisa suas escolhas anualmente, a cada aniversário. Ela senta com um procurador que foi mantido anônimo em sua exposição e com dois de seus três filhos para revisar cada diretiva, permitida ou não. A economista também acionou a justiça para que a conversa sobre o testamento vital seja levada a todas as instâncias.
“As preocupações com as questões físicas me levaram a escrever o documento. Eu enxergo a morte como um ritual de passagem e quero que isso seja feito da forma mais tranquila possível. Hoje promovo mensalmente em São Paulo o ‘Death Café’, um café da tarde com a sociedade para falar sobre a morte. Aceitar a existência e chegada dela a qualquer momento é se descobrir, se aceitar e entender a finitude da vida”.
Pesquisa
A FEHOESP disponibilizará em breve em seu portal uma pesquisa que objetiva formar uma massa crítica para construir um projeto de lei sobre a morte digna.
Durante o evento os participantes puderam responder as perguntas que serão feitas no questionário e apontar um panorama preliminar de opiniões sobre testamento vital e diretivas antecipadas do paciente.
Entre os resultados, 53,7% dos entrevistados disseram ser necessária uma lei que aborde claramente a morte digna; 45% acredita que o documento não precisaria de procuradores e/ou testemunhas caso fosse obrigatório um registro em cartório e 82% votou a favor da prevalência da vontade do paciente acima de qualquer vontade médica.
Por Rebeca Salgado
Foto: Leandro Godoi