Na passagem bíblica sobre a partilha das vestes de Jesus, os soldados romanos “lançaram sortes” para decidir quem ficaria com a túnica dele. Segundo a mitologia grega, a divisão dos céus, dos mares e do submundo foi definida através de sorteio entre os deuses Zeus, Poseidon e Hades. Apostar em gladiadores era prática comum na Roma antiga, assim como em atletas, nas primeiras Olimpíadas, na Grécia. Os jogos de azar, portanto, são milenares e sempre acompanharam a Humanidade. Uma prática que até então era esporádica, hoje alcançou a palma da mão, com efeitos nocivos sobre a economia e a saúde das pessoas.
As apostas online têm movimentado valores exorbitantes no Brasil. De acordo com o Banco Central (BC), no primeiro trimestre deste ano o volume mensal de gastos variou entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bi. Estes valores são mais do que o dobro do gasto de 2024, que registrou média mensal de R$ 10 bi, totalizando R$ 120 bi no ano, ainda segundo o BC. Caso o atual ritmo se mantenha, as chamadas bets poderão movimentar este ano aproximadamente R$ 250 bi. Para efeito de comparação, o valor é superior ao orçamento destinado para o Ministério da Saúde em 2025, de R$ 245 bi.

Pesquisa DataSenado indica que 22,1 milhões de brasileiros são usuários dos sites de apostas, sendo a maioria formada por homens entre 16 e 39 anos. Infelizmente, muitos têm retirado recursos da família e direcionado para as apostas online, como mostra levantamento DataFolha/FGV realizado em 2.600 domicílios. Nele, 29% dos entrevistados assumiram que gastam parte do dinheiro destinado a lazer e alimentação com as bets. Estimativa do BC lança ainda mais luz sobre o problema, ao prever que 20% da massa salarial nacional passa por casas de aposta ao menos uma vez por ano. São recursos que estão sendo retirados dos setores econômicos produtivos e direcionados para os jogos.
A necessidade incontrolável de jogar é uma patologia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como ludopatia e classificada como um transtorno do controle dos impulsos ou transtorno relacionado ao uso de substâncias e comportamentos dependentes e compulsivos. A ludopatia utiliza os mesmos mecanismos neuropsicológicos da dependência química, pois ativa a liberação de dopamina, o neurotransmissor do prazer. O resultado é a sensação de euforia, de autoconfiança. Esse estado incentiva a repetição e faz com que o cidadão que sofre de dependência recorra com cada vez mais frequência às apostas, para obter o mesmo prazer que tinha inicialmente. Com as drogas ilícitas esse comportamento leva à overdose; nos jogos, leva ao endividamento, a problemas sociais e familiares, estresse, insônia, ansiedade, depressão, a pensamentos suicidas e ao aumento de doenças como arritmias, infarto e Acidente Vascular Cerebral (AVC).
O tratamento com maior evidência científica para o transtorno de jogos é a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), mas pode incluir também psicoterapia, participação em grupos de apoio e, em alguns casos, o uso de medicamentos é indicado. Atualmente, com a saúde digital em franca ascensão e maior acesso das pessoas à internet, é possível oferecer Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) em ambiente 100% digital. Estudos mostram que, quando bem estruturada, os níveis de eficácia são semelhantes à TCC presencial.
O fato é que a Lei 14.790/23, conhecida como a Lei das Bets, definiu regras, tributou empresas e apostadores, mas não previu os impactos dos jogos online na sociedade. Agora, o Brasil precisa agir – e rápido. Segundo o Ministério da Previdência Social, ainda que o número pareça baixo (84 casos de janeiro a abril deste ano), os pedidos de auxílio-doença concedidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por ludopatia cresceram 2.300% entre 2023 e 2025. Paralelamente, inexistem protocolos clínicos específicos sobre o transtorno no Sistema Único de Saúde (SUS), nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
O problema torna-se ainda mais delicado porque as bets estão por toda parte, com investimento altíssimo em marketing e publicidade. De junho de 2024 a junho deste ano, rastreamento do Ibope Repucom aponta que os sites de apostas destinaram R$ 1,1 bilhão em patrocínios, verbas para influencers e financiamento de programas esportivos. Portanto, fica cada vez mais difícil o cidadão escapar da sedução dos jogos online.
Diante do avanço das apostas e seus impactos crescentes na sociedade, há uma série de medidas regulatórias que podem ser consideradas: restrições a propagandas e patrocínios em eventos de grande visibilidade, limites de tempo e valor por usuário nas plataformas, mecanismos de autoexclusão, monitoramento de comportamentos de risco e verificação de idade obrigatória.
No entanto, embora a regulamentação seja crucial para mitigar a exposição e o incentivo ao jogo, milhões de brasileiros já foram afetados pela compulsão. Por isso, é fundamental que a sociedade se mobilize e exija, com urgência, uma resposta concreta do Executivo e do Legislativo para o sistema de saúde. O Brasil tem a oportunidade de adotar medidas, como algumas citadas acima, não apenas para aliviar o sofrimento de quem já foi impactado, mas também para prevenir o surgimento de novos casos de dependência. Essa é uma política pública possível – e urgente.
Francisco Balestrin
Presidente da FESAÚDE e do SindHosp
Artigo publicado na edição de 17/08 do jornal Correio Braziliense. Clique aqui e acesse a publicação
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