Por Yussif Ali Mere Junior
Há anos a saúde figura como uma das principais preocupações dos brasileiros. Assistimos diariamente aos desmandos na saúde pública: filas intermináveis para consultas e exames, estabelecimentos em situações precárias de atendimento, falta de profissionais, medicamentos e materiais, enfim, um quadro de total desassistência. Esse cenário, infelizmente, vem se agravando.
Saúde é um setor que está direta e principalmente ligado à economia, à educação e ao saneamento básico. Um povo mais educado, cidades com bom tratamento de água e esgoto e um orçamento compatível para prevenção, promoção e assistência elevam os indicadores sociais. Mas, afinal, a falta de recursos é a responsável pela atual situação da nossa saúde?
Alguns defendem a tese de que, no Brasil, o setor não carece de mais verbas, mas, sim, de melhor gestão. Para fugir desse debate, que não leva a novos horizontes, é premente assumir que a nossa saúde tem deficiência de recursos financeiros, sim, mas também poderia produzir mais com o que hoje lhe é destinado.
O Brasil é o oitavo maior mercado de saúde no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). O País movimenta anualmente cerca de R$ 550 bilhões, incluindo investimentos públicos, do mercado de planos e seguros de saúde e o gasto direto das famílias. São quase 10% do produto interno bruto (PIB), que totalizou R$ 5,9 trilhões em 2015 (o do ano passado ainda não foi divulgado, mas será menor). É um montante considerável. Porém, se pegarmos apenas o investimento público, veremos que ele responde por 47% do total de recursos e atende a mais de 75% da população (151 milhões de brasileiros). O que os cidadãos custeiam diretamente somado ao investimento do mercado de planos de saúde – que sente os reflexos da crise e perdeu 1,2 milhão de vidas de janeiro a novembro do ano passado – responde por 53% do total de gastos, lembrando que “apenas” 24,78% das pessoas têm algum tipo de plano de saúde. Num país que constitucionalmente coloca a saúde como “direito de todos e dever do Estado” e se propõe a assegurar universalidade, integralidade e equidade a seus cidadãos, esses dados mostram a discrepância entre a realidade orçamentária e o que o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria entregar.
É fato também que há desperdício. Não há dados nacionais, mas relatório da OMS intitulado O Financiamento da Cobertura Universal afirma que entre 20% e 40% de todos os gastos em saúde são desperdiçados por ineficiência. Se o Brasil movimenta cerca de R$ 550 bilhões por ano e se hipoteticamente perdermos 30% disso para a ineficiência, estamos falando de aproximadamente R$ 165 bilhões anuais que estão indo para o ralo, num país que atravessa séria crise econômica e retração dos investimentos. Esse montante perdido para o desperdício, aliás, é bem superior ao teto do orçamento aprovado para o Ministério da Saúde este ano, de R$ 125 bilhões.
Para pôr esse setor tão complexo nos trilhos da sustentabilidade é necessário enfrentar com coragem vários desafios, que vão da reforma do Estado à rediscussão sobre a viabilidade da integralidade no SUS, à necessidade de introduzir redes integradas e continuadas de assistência, à introdução de tecnologias de informação, e por aí afora. Há, porém, um tema capaz de garantir eficiência e eficácia ao sistema de saúde e que tem sido pouco explorado: a deficitária formação dos profissionais da cadeia produtiva da saúde, que não contempla diretrizes de atuação no SUS e no setor privado. Eles chegam ao mercado sem conhecimento das políticas públicas e sem noções de gerenciamento e gestão. Algumas grades curriculares têm disciplinas que tratam de sociedade e cidadania, saúde pública, saúde coletiva, comportamento e até de gestão, mas todas muito direcionadas ao exercício específico da profissão. Isso faz com que profissionais de diferentes áreas da saúde façam a “gestão” do seu próprio trabalho, de forma individualizada, quando todos deveriam estar focados na gestão da integralidade da assistência. Essa mudança de pensamento e comportamento precisa começar na universidade. E a tarefa é árdua.
Dados mais recentes do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) mostram a complexidade na gestão dos recursos humanos da saúde. São 2.580.985 profissionais cadastrados. Esse universo é formado por nada menos que 364 diferentes ocupações, seguindo os critérios da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Pouco mais de 1 milhão de profissionais (39,1% do total) têm nível superior. São médicos de várias especialidades, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos e odontólogos, entre outros. Os técnicos representam 29,4% do total dos recursos humanos, ou 759.239 pessoas.
Para melhorar a qualidade da assistência, principalmente a que o usuário percebe como valor, é necessário que essa equipe multiprofissional trabalhe integrada, seja dentro da mesma organização ou no âmbito do sistema de saúde. Para que isso seja feito, as atribuições técnicas de cada profissão precisam ser extrapoladas. Isso vale também – ou principalmente – para os médicos. Além do funcionamento do mercado, os profissionais precisam conhecer os protocolos da organização em que atuam, ser incentivados a alcançar metas e se sentirem parte de uma rede de relações que tem como foco principal o bem-estar do paciente e a qualidade assistencial. Certamente isso ajudaria, e muito, também no combate ao desperdício.
Mudanças estruturais importantes, necessárias ao sistema de saúde brasileiro, só se vão concretizar com o envolvimento de todos. Novas abordagens na formação dos profissionais da saúde são importantes para que o mercado se possa reorganizar e inovar. Mais que de bons profissionais, precisamos formar cabeças capazes de promover mudanças.
*Yussif Ali Mere Junior é médico nefrologista e presidente da Federação e do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (FEHOESP e SINDHOSP)
Fonte: O Estado de S. Paulo