Gordura do bem

Depois de acidentes de trânsito e assassinatos, os acidentes com queimaduras são as maiores causas de morte registradas no Brasil. Em média, 1 milhão de casos são registrados a cada ano...

Compartilhar artigo

Estudo conduzido no Rio de Janeiro utiliza células adiposas para garantir cicatrização de queimaduras mais rápida e com menos sequelas

Depois de acidentes de trânsito e assassinatos, os acidentes com queimaduras são as maiores causas de morte registradas no Brasil. Em média, 1 milhão de casos são registrados a cada ano, de acordo com a Sociedade Brasileira de Queimaduras, fazendo com que esse tipo de acidente se torne um problema de saúde pública. A maior dificuldade enfrentada pelas vítimas é o tratamento das lesões. Na maioria das vezes, e dependendo da gravidade do acidente, as feridas, além de deixarem marcas profundas, atrapalham a funcionalidade dos membros, tornando o retorno à vida normal extremamente penoso. Uma pesquisa, porém, promete mudar esse cenário, ao desenvolver uma nova terapia, que usa gordura corporal para cicatrizar com mais eficiência e rapidez as queimaduras, diminuindo de forma significativa as sequelas funcionais e estéticas.

O estudo, liderado pelo cirurgião plástico Marco Aurélio Pellon, baseou-se na capacidade de regeneração que os tecidos adiposos possuem. Segundo Pellon, a gordura é a única célula do corpo humano com autonomia para regular a própria irrigação sanguínea, além de ter enorme plasticidade, podendo se transformar em outras células e adquirir funções semelhantes às que foram danificadas. Na nova técnica, parte da gordura subcutânea – a mesma que é retirada em uma lipoaspiração – é aspirada do próprio paciente. Em seguida, as células são reaplicadas sobre a lesão, como se fosse uma pomada.

Depois de retirar a gordura, o médico induz no material uma agressão semelhante à de uma queimadura. “Ela, então, começa a produzir fatores de crescimento, um líquido gelatinoso que é colocado sobre a lesão”, explica Pellon. Nas queimaduras de segundo grau, testada pelo médico, a lesão atinge a epiderme e a derme, mas não chega a afetar a hipoderme – onde fica a gordura. Ao aplicar o tecido adiposo sobre a queimadura, o médico aproveita as células de gordura que não foram atingidas pela queimadura e, com isso, obtem uma duplicação da resposta à cicatrização. “Fizemos uma espécie de sanduíche na lesão, que ficou espremida entre a gordura subcutânea da área afetada e a que foi aplicada no local. Com isso, conseguimos duplicar a quantidade da resposta inflamatória de substâncias cicatrizantes na ferida”, explica Pellon.

A terapia, considerada simples pelo médico, começou a ser testada em 2010, na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, em três pessoas que sofreram queimaduras graves de segundo grau, em mais de 60% do corpo. Em todas elas, as células adiposas atuaram com eficiência na regeneração do tecido queimado. O cirurgião observou, também, que a necessidade de enxertos e hipertrofia nas áreas enxertadas foi reduzida. Além disso, a recuperação da pele levou a metade do tempo que levaria para cicatrizar no tratamento convencional.

De acordo com Pellon, isso torna a terapia proposta vantajosa, sobretudo, no aspecto funcional. Dependendo do local atingido – cotovelos, mãos, pescoço, joelhos, por exemplo -, ele pode ficar retraído e limitar os movimentos. “O paciente até se recupera, mas fica com sequelas, como não conseguir esticar o braço, por exemplo”, diz o cirurgião plástico. Para que isso não ocorra, o tempo de cicatrização é extremamente importante, pois quanto mais rápida a recuperação, menos tecido fibroso se forma. Com a aplicação das células adiposas, Pellon explica que houve maior velocidade da cicatrização, impedindo a formação de fibrose (consequência da resposta exagerada do organismo para recuperar a parte atingida) e permitindo uma recuperação de mais qualidade da pele. “Uma cicatriz boa é aquela que, além do bom resultado estético, é também funcional, pois uma má cicatrização pode limitar os movimentos do paciente”, esclarece o médico.

Outra vantagem extremamente importante da terapia é a não rejeição da gordura pelo organismo, pois o material utilizado é do próprio paciente. “Esse meio não leva nenhuma substância estranha. No meio artificial, são usadas substâncias de animais. No nosso caso, é tudo natural”, explica Pellon, que trabalha com a recuperação de queimados há mais de 30 anos. Além disso, há material em abundância – um adulto magro tem cerca de 40 bilhões de células gordurosas – e uma tecnologia totalmente dominada para a sua retirada, o que torna o processo simples e muito menos oneroso.

Produção em série
Depois de retiradas do paciente, as células de gordura aplicadas sobre a queimadura morrem pela falta de oxigênio, e deixam de produzir os fatores de crescimento. O próximo passo da pesquisa é conservar as células adiposas em um ambiente controlado, no qual recebam oxigênio na medida certa para que não morram e continuem produzindo as substâncias de cicatrização. “Vamos desenvolver um meio de cultura que forneça o líquido nutritivo a essas células, para depois colhermos e aplicarmos nas lesões”, explica Radovan Borojevic, professor emérito de ciências biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor científico do Laboratório Excellion, também no Rio de Janeiro, no qual o estudo está sendo realizado.

Segundo Borojevic, esse procedimento poderá fazer com que as células produzam os fatores de crescimento em série, reduzindo a retirada de células adiposas do paciente. “O processo que buscamos é a extração das células do tecido adiposo e a aplicação em sequência na queimadura para ver se os resultados são melhores”, relata o cientista.

Após receberem a autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para ampliar o estudo em um número maior de pacientes, Pellon e Borojevic acreditam que, até o início de 2012, a terapia com gordura para queimados seja uma realidade nas clínicas. Nessa nova etapa, os pesquisadores vão verificar qual a quantidade correta de gordura a ser aplicada nos queimados, para a recuperação da pele. “Vamos padronizar a terapia e depois apresentá-las aos colegas”, afirma o professor da UFRJ.

Nelson Piccolo, cirurgião plástico, secretário-geral da Confederação Mundial das Sociedades de Cirurgia Plástica e membro da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Regenerativa e Estética (INSRE, sigla em inglês), explica que boa parte da comunidade científica que se debruça sobre terapias regenerativas estuda o uso células gordurosas para a recuperação de diversas lesões, tais como as do infarto cardíaco. “Células adiposas são semelhantes às células-tronco. Isso faz com que seu uso para curar o próprio organismo seja infinito”, afirma. “A grande discussão é qual seria a maneira ideal de aplicação para se ter o benefício da evolução da gordura para outros tecidos”, aponta o médico.

No caso das queimaduras, Piccolo ressalta que a maior dificuldade de padronizar seu uso clínico vem das diferenças entre os pacientes queimados. Ele acredita, contudo, que, num futuro bastante próximo, esse tratamento estará disponível. “Quando se estabelecer a forma como será utilizado, vai virar rotina”, afirma.
 
 
Fonte: Correio Braziliense

Artigos Relacionados...

Últimas Notícias

O silêncio dos partidos sobre a saúde

Propostas contidas nos programas de governo, em sua maioria, são genéricas e, com frequência, inexequíveis As mazelas do sistema de saúde costumam figurar entre as

Curta nossa página

Mais recentes

Receba conteúdo exclusivo

Assine nossa newsletter

Prometemos nunca enviar spam.

plugins premium WordPress
Rolar para cima