Aval dado pelo Conselho Federal de Medicina ao recebimento de brindes da indústria é criticado por órgão paulista
Um acordo que permite aos médicos viajar e receber brindes da indústria farmacêutica provocou um racha entre o CFM (Conselho Federal de Medicina) e o conselho médico paulista, o Cremesp.
Em 2010, o CFM havia anunciado que proibiria viagens de médicos a convite dos laboratórios. No mês passado, porém, o conselho recuou da ideia e acabou fechando um acordo com a Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa) liberando as viagens.
Em sessão plenária do último dia 23, os conselheiros paulistas aprovaram um documento em que discordam do acordo por julgá-lo “um retrocesso”. “Ele sedimenta práticas que são eticamente inaceitáveis”, diz o documento, obtido com exclusividade pela Folha.
Para o conselho, é “inaceitável” a parceria entre o CFM, um órgão federal julgador e disciplinador da classe médica, e uma entidade representativa de empresas privadas que têm interesses nas áreas de medicina e saúde.
“Por princípio, esse acordo não deveria existir porque há um evidente conflito de interesses”, afirma o médico Renato Azevedo Júnior, presidente do Cremesp.
Entre as distorções apontadas pelo Cremesp estão a autorização de viagens e participações de médicos em congressos sem apontar os critérios para escolha dos beneficiados, além do registro de efeitos adversos de medicamentos – que passaria a ser fornecido pelo médico ao propagandista da indústria.
“O médico deve informar a Vigilância Sanitária sobre efeitos colaterais, não o propagandista. Médico não vai trabalhar para a indústria”, afirma Azevedo Júnior.
Ele também critica o fato de o acordo autorizar que médicos recebam presentes e brindes oferecidos pelos laboratórios e estipular valores e periodicidade. “Além de ser difícil fiscalizar isso, não tem o menor efeito porque não é pelo valor que o médico ser influenciado.”
Estudos mostram que mesmo brindes baratos, como uma caneta, podem influenciar as decisões médicas, ainda que inconscientemente.
No documento, o Cremesp recomenda ainda que o CFM reabra a discussão sobre a necessidade de revisão e aprimoramento das normas éticas que envolvam a relação entre médicos e indústria.
Outro lado
O presidente do CFM, Roberto D’Ávila, rebateu ontem as críticas dos colegas paulistas. “São Paulo pode fazer o barulho que quiser. Federal é federal. O protocolo foi aprovado por unanimidade pelo nosso pleno [instância máxima da categoria]. Acho desnecessária essa polêmica”, afirmou.
Segundo ele, “nunca foi fechada a discussão” e ainda é possível alterar pontos do acordo que, porventura, mereçam ser revistos. “Não existia regulamentação nenhuma. Agora foi feito um regramento mínimo. Bem ou mal se construiu alguma coisa.”
D’Ávila diz que, durante as discussões sobre o acordo com a Interfarma, houve várias oportunidades para os conselhos regionais se manifestarem contra, o que não teria ocorrido.
Já Azevedo Júnior afirma que, em janeiro de 2011, o Cremesp enviou várias críticas sobre o assunto, mas que não foram acolhidas pelo CFM.
Prescrições são afetadas por ações das farmacêuticas
O relacionamento entre médicos e farmacêuticas pode influenciar, de forma negativa ou desnecessária, as prescrições de medicamentos e as decisões de tratamento médico.
Vários estudos demonstram que os gastos com ações dirigidas aos médicos são repassados ao preço final dos medicamentos e têm impacto no bolso dos cidadãos e nos custos do sistema de saúde.
Nos EUA, os laboratórios dedicam ao marketing cerca de 25% de seus orçamentos, contra menos de 15% destinados à pesquisa.
A maioria dos médicos assegura que não se deixa influenciar por brindes em suas decisões clínicas. Aceitar presentes em nada prejudicaria os pacientes.
Pesquisa Datafolha feita em 2010 mostrou que a maioria dos médicos no Estado de São Paulo aceita brindes e avalia como positiva a relação com a indústria farmacêutica. Também não vê problemas com eventuais conflitos de interesses.
Mas um estudo clássico de 2000, publicado no “Jama” (periódico da Associação Médica Americana), concluiu que a distribuição de brindes, amostras grátis e subvenções para viagens tem efeito sobre as atitudes dos médicos.
Pagar uma viagem para um médico aumentaria entre 4,5 e dez vezes a probabilidade de que ele receite as drogas feitas pela patrocinadora.
Fonte: Folha de S. Paulo