A carência de doadores de fígado no Brasil é preocupante. O alerta é de médicos especialistas e dos próprios transplantados. Eles apontam que o país conta com número muito abaixo do ideal para suprir a demanda de transplantes de doadores não vivos em adultos.
De acordo com o membro do corpo clínico do Serviço de Transplante de Órgãos e Cirurgia de Fígado do Departamento de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Wellington Andraus, apenas 35% dos transplantes de fígado necessários são feitos no país.
“Uma estimativa da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos aponta que seriam necessários 25 transplantes por milhão de habitantes por ano no Brasil e conseguimos apenas 8 transplantes por 1 milhão de habitantes por ano. Apenas um terço dos transplantes são efetuados, os outros, 65% das pessoas que precisam deste procedimento morrem na fila”, lamentou ele.
Segundo o médico a situação é ainda mais grave em São Paulo, onde há maior fila de pacientes na lista de espera do país, em números relativos e absolutos. Ele ressaltou que a escala Meld-Modelo para Doença Hepática Terminal – que pontua a gravidade da doença hepática crônica, em pacientes hospitalizados em São Paulo está entre 32 e 33 [83% de mortalidade]. “Em países como os Estados Unidos e os da Europa essa escala está em torno de 20 [76% de mortalidade].
O problema prosseguiu o cirurgião é multifatorial, como carência de serviços de saúde em regiões pobres do país, precariedade do sistema de saúde em alguns hospitais, entre outros.
Existem duas modalidades possíveis para transplante hepático: doadores falecidos por morte encefálica e intervivos (família ou aparentados compatíveis que doam para o paciente com fígado doente). Andraus explicou que o ideal é que não seja necessária a doação de intervivos, para evitar risco cirúrgico para as pessoas saudáveis.
“A estimativa é que ocorrem 50 a 60 mortes encefálicas por milhão de habitantes por ano. Se conseguíssemos 25, já estaríamos atendendo às nossas necessidades”, comentou ele ao admitir que praticamente nenhum país tem autossuficiência em doadores. “Só que aqui essa relação está muito pior do que a de outros países, inclusive, da América do Sul”, explicou.
Ele reconhece o esforço do Ministério da Saúde em descentralizar a captação dos órgãos e treinar cirurgião, mas acredita que um dos gargalos é a falta de campanhas dentro da própria área de saúde para que os médicos e enfermeiros notifiquem potenciais doadores.
A colaboradora da Associação Brasileira dos Transplantados de Fígado e Portadores de Doenças Hepáticas (Transpática) e coordenadora de casa de apoio de transplante em São Paulo, Andrea Teixeira Soares acredita que é possível melhorar mais a captação dos órgãos de doadores com morte encefálica.
“A maioria dos hospitais tem pouca estrutura. Muitas vezes, falta leito para manter o doador que já está em morte cerebral, falta incentivar as equipes a notificarem, pois muitos doadores morrem sem serem notificados”, comentou ela que é transplantada há 14 anos e precisou esperar dois anos na fila por um novo fígado.
“A espera é muito angustiante. Assim como eu, havia várias pessoas no ambulatório à espera de transplante. Quando um deles falecia era um baque para todos os outros, a gente se perguntava se conseguiria chegar a nossa vez. É uma fase de bastante insegurança. Mas não temos outra alternativa senão aguardar”, comentou.
Andrea Soares ressaltou a importância das campanhas de conscientização.“Não bastam campanhas pontuais, na época da semana de doação de órgãos em setembro, são necessárias campanhas constantes que esclareçam às famílias como é o processo de doação e explicar que a morte encefálica é irreversível”, disse.
“Muitas famílias recusam-se a doar os órgãos do parente morto por não compreenderem o que é morte cerebral e acreditarem que enquanto o coração bater a pessoa continuará viva e irá se recuperar”, acrescentou.
Apesar dos desafios enfrentados no país, ela acredita que a situação da fila de transplantes melhorou muito nos últimos anos e elogiou a mudança do critério cronológico para o de gravidade a partir de 2006.
“Na época em que fiz o transplante, o critério era cronológico e muitas vezes aquele que estava no princípio da fila estava melhor do que o paciente que ocupava o último lugar e, provavelmente, essa pessoa acabava falecendo. Agora está um pouco mais igualitário,” opinou ela. “Mas nenhum critério será suficientemente justo”, ponderou.
Os problemas mais comuns com o fígado que acabam gerando a necessidade do transplante no Brasil são ocasionados predominantemente pelo vírus C, responsável por alto índice de cirrose, além do álcool, hepatites autoimunes, gordura no fígado, entre outras causas.
Até o fechamento desta matéria, o Ministério da Saúde não havia se pronunciado sobre a situação da fila de transplantes de fígado no país.